Falta de equipamentos, baixa frequência dos alunos e dificuldades de avaliação são principais reclamações. Na tentativa de aumentar envolvimento de alunos, estudantes e professores criaram gincana virtual.
Falta de equipamentos, baixa frequência dos alunos e dificuldades de avaliação são principais reclamações. Na tentativa de aumentar envolvimento de alunos, estudantes e professores criaram gincana virtual.
Foi necessário organizar turnos de estudo para que os filhos da cozinheira Raquel Chaves, de 48 anos, conseguissem acompanhar as aulas on-line disponibilizadas pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Desde a suspensão das aulas presenciais em março de 2020, a filha mais velha de Raquel, de 17 anos, aluna do último ano do Ensino Médio, passou a assistir às aulas durante a madrugada para que os irmãos menores pudessem dividir o dois celulares e o computador da família durante o dia.
“Essa semana eu pensei duas vezes ‘vou na loja e vou comprar um computador’, mas eu vou me endividar, não posso fazer dívida agora com essa situação que a gente está vivendo. A gente não tem certeza de nada", desabafa Raquel, que passou a receber 70% do salário que ganhava antes do início da pandemia no restaurante em que trabalhava.
Dois meses após a suspensão do ensino presencial, assim como Raquel, pais e professores relatam que ainda enfrentam dificuldades para se adaptar ao modelo de ensino a distância. Com as escolas fechadas, a conexão por meios de aparelhos eletrônicos se tornou essencial e o abismo tecnológico se tornou mais evidente.
Os estudantes podem ter acesso ao conteúdo por meio dos aplicativos Centro de Mídias SP (CMSP) e dos canais digitais 2.2 - TV Univesp e 2.3 - TV Educação. Os apps estão disponíveis para os sistemas Android e IOS.
Além disso, professores também podem oferecer aulas e propor atividades extras por meio da plataforma Google Classroom e Microsoft Teams. No entanto, os educadores têm notado que a participação dos alunos têm diminuído com o passar do tempo.
Em média, turmas presenciais do Ensino Fundamental têm cerca de 40 alunos e no Ensino Médio aproximadamente 45 estudantes. Entretanto, menos da metade desse número de alunos estão frequentando as aulas virtuais, de acordo com professores. Algumas salas de aula virtuais ficam completamente vazias enquanto o educador aguarda a presença dos alunos.
De acordo com o subsecretário de articulação Henrique Pimentel, da Secretaria Estadual de Educação, as aulas no Google Classroom e Microsoft Teams são opcionais e, por isso, para que os alunos frequentem é necessário uma divulgação intensa da escola.
"Esse é um ponto importante, tem que avisar os alunos desses horários, tem que avisar as famílias, e, obviamente, a comunicação é um desafio nesse período. O acesso às famílias também é um desafio, muitas vezes as famílias estão trabalhando e o filho só fica online aquele horário e é difícil se comunicar, mas chegar nelas assim é muito importante", afirma Pimentel.
A rede estadual possui 3,5 milhões de alunos matriculados, de acordo com o censo escolar. No entanto, segundo a pasta, até o dia 24 de junho o aplicativo do Centro de Mídias SP tinha tido 2,8 milhões de downloads, e obtido cerca de 1,6 milhão de acessos de alunos.
Esses números correspondem aos estudantes que fizeram download no aplicativo e se logaram pelo menos uma vez, o que não significa que os estudantes estejam efetivamente assistindo às aulas.
A cozinheira Raquel afirma que, apesar de ter conseguido baixar, tem tido dificuldades para conseguir acessar as aulas do aplicativo. Ela conta que aumentou a conta de internet para que os filhos tivessem acesso ao conteúdo, mas que mesmo assim encontra dificuldades.
“Às vezes eu fico estressada, às vezes eu penso o que é que eu vou fazer, exigir o quê? ‘Ah, mãe mas as aulas só vão voltar em setembro’, eles falam, e eu digo 'mas você tem que estudar todos os dias como se fosse presencial'. Aí vai nos aplicativos, não funciona, trava o sistema, aí fica essa bagunça que está. A gente não sabe qual rumo que a gente vai tomar. O que vai ser”, desabafa Raquel.
Segundo o subsecretário de articulação Henrique Pimentel, a Secretaria Estadual de Educação patrocina o pacote de dados para todos os estudantes e professores. A tecnologia se chama tarifação reversa e para ter acesso ao benefício basta aceitar o chamado 'VPN'.
"É como existisse um banco de dados gigante aqui de posse do estado, e quando o estudante está usando o aplicativos, a operadora dele desconta do meu banco de dados e não do banco de dados do estudante", afirma.
Entretanto, Pimentel diz que em muitos lugares, mesmo com o plano de dados da pasta, os estudantes e professores ainda podem encontrar dificuldades para acessar o aplicativo devido a região de acesso ou ao modelo do celular.
"Às vezes, a região que a pessoa mora cujo sinal de celular já é um pouco ruim, então, isso afeta na estabilidade do aplicativo. Em regiões no extremo sul da capital de São Paulo, lá quase perto da represa em que o sinal de celular é muito ruim, nesses casos obviamente que a transmissão de celular é prejudicada e a gente tem recomendado que os estudantes assistam pela televisão e depois usem o celular para mandar as atividades. Outra questão é sobre o próprio celular onde os alunos acessam. O aplicativo roda na maioria dos modelos, mas celulares mais antigos obviamente vão enfrentar essa dificuldade", afirma Pimentel.
Para um professor de educação física Everaldo Clemente, da Escola Estadual Prof. Camillo Faustino de Mello, em Mogi das Cruzes, o segundo bimestre que está terminando terá mais alunos com notas em branco por não estarem frequentando as aulas nem entregando as atividades propostas.
“Eu me sinto um inútil porque não consigo avançar. Os alunos se logam tarde da noite e querem tirar dúvida, mas o horário das minhas aulas é das 7h às 12h35, quando muitas vezes não tem ninguém online. Está todo mundo confuso. A gente esperava dificuldade com equipamentos e tecnologia de pelo menos metade dos alunos, mas a outra metade tampouco está frequentando. E da metade que se logou, 80% não entrega as atividades propostas”, afirma.
Everaldo adotou a plataforma Microsoft Teams para algumas de suas aulas, mas frequentemente nenhum aluno comparece no horário à aula marcada.
Aulas e avaliações
Para o professor de história e filosofia Álvaro Dias, à medida que o número de alunos que assistem às aulas cai, a escola deixa cada vez mais de cumprir seu papel e o ensino à distância se mostra cada vez menos inclusivo.
"Desde o começo do isolamento social e com o ensino remoto, a experiência do ensino à distância não conseguiu alcançar os resultados esperados e percebe-se um esvaziamento no processo seja pela falta de estrutura, ou pela falta de planejamento e de investimentos adequados em inovação tecnológica ou pelo excesso de atividades e conteúdos propostos. Os alunos têm demonstrando há um bom tempo desânimo, desinteresse, reduzindo drasticamente a participação nas plataformas do ensino remoto”, afirma.
Álvaro é um dos professores que defende o adiamento do ano letivo, pois acredita ser injusto avaliar os alunos nesse contexto. Ele cita como exemplo o adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, pelo Ministério da Educação. A decisão só foi tomada depois de muitas críticas e do Senado ter aprovado a suspensão das provas até o fim da pandemia.
Para o professor, a prioridade de muitos alunos e professores tem sido sobreviver no meio da pandemia de coronavírus.
"Eu mesmo aqui não tenho computador e uso um celular de 32 GB defasado e estou sem dinheiro para consertar o meu notebook.Tenho de escolher entre pagar aluguel, luz, água e comida e arrumar meu notebook. Muitos alunos também não têm acesso à internet e aparelhos tecnológicos sofisticados. Semana passada demos uma cesta básica para um aluno que está passando necessidade. Os professores ajudaram e compraram os itens”, relata.
O professor Álvaro defende também que além da dificuldade de transmitir o conteúdo a avaliação das crianças também fica prejudicada no ensino a distância. “O ideal é adiar o ano letivo. Dentro desse horizonte não há possibilidade alguma de avaliação e nem de mensurar notas, como se fosse um processo classificatório", observa.
Segundo o subsecretário de articulação Henrique Pimentel, as atividades se tornaram uma forma de avaliação e ajudam a identificar se os alunos estão, ou não, acompanhando. No entanto, aqueles que não entregarem poderão recuperar as notas no retorno às aulas presenciais.
"A atividade se tornou uma avaliação no sentido de que ela vai contar pra gente saber se o aluno está, ou não, acompanhando as atividades do Centro de Mídia. E aí na hora que o professor recebe essa atividade, ele faz esse registro no diário de classe, e aí depois ele coloca ou não uma nota no sistema do aluno. O que que isso quer dizer? O aluno pode estar hoje numa situação com ou sem nota. Com nota, significa que ele está acompanhando as atividades, independente da nota que está lá, significa que alguma coisa ali ele entregou, que foi possível avaliar etc. Se o aluno está sem nota, significa que ele não está conseguindo acompanhar as atividades. E aí essa nota vai ficar lá um tracinho, digamos assim, não significa que ele reprovou necessariamente esse bimestre. Ele fica sem nota e essa nota será redefinida no retorno do presencial", afirmou Pimentel.
Reforço
Ainda de acordo com o subsecretário de articulação Henrique Pimentel, a Secretaria Estadual de Educação tem um programa de reforço e recuperação que será um dos pilares na volta às aulas. O objetivo é garantir que os todos dominem o conteúdo, tanto os estudantes que de alguma forma não conseguiram acompanhar a totalidade dos conteúdos por falta de equipamentos ou aqueles que se logaram e tiveram alguma dificuldade do acompanhamento das aulas on-line.
“Dificuldade que eu falo tanto cognitiva, quanto também dificuldade de acesso em alguns casos. O reforço e recuperação é principalmente para esses estudantes, mas não só para eles, a gente está falando aqui de um programa que vai ser importante para a totalidade dos alunos da rede estadual”, afirma Pimentel.
De acordo com o subsecretário, também está sendo desenhado o projeto de um quarto ano do Ensino Médio opcional, uma demanda dos próprios alunos.
“O estudante que está conseguindo acompanhar as atividades, se ele performar bem, se ele conseguir realmente ingressar no ensino superior, ele deve sim ser aprovado e continuar a sua trajetória. Para aqueles que se sentirem prejudicados e não quiserem, não conseguirem atingir seus objetivos ao final do ano, para eles a gente está chegando nessa solução que é o quarto ano do Ensino Médio”, afirma.
Dificuldades
Em maio, conforme o G1 mostrou, o estudante Rauny Lucas de Siqueira e Silva, de 15 anos, não estava conseguindo assistir às aulas por falta de um celular, wi-fi em casa, TV disponível, material didático e seu registro de aluno para logar no aplicativo. Passados dois meses, as coisas mudaram bastante.
Rauny ganhou um celular de um grupo de médicos residentes do Hospital das Clínicas de São Paulo, sua família assinou um serviço de wi-fi para sua casa, ele conseguiu retirar o material didático na escola e recuperou seu acesso ao aplicativo de posse de seu registro de aluno. Além disso, uma professora doou apostilas de cursinhos para ele, que tem estudado em casa com esse material.
"Fiquei feliz com o celular e eufórico por poder estudar. A escola achou a chave da secretaria onde estavam os livros, que tinham perdido, aí ligaram para os pais para buscar os livros há um mês", conta ele.
Mas não que seja fácil compreender o conteúdo de todas as aulas. Apesar de estar com todo o material e estrutura para estudar e sempre ter sido bom aluno em exatas, Rauny revela ter dificuldade de entender as aulas de matemática, física e química.
"Complica um pouco por não ter um professor presente, tem coisas que não dá para entender, então pesquiso, vejo vídeos. É bem mais difícil sem o professor. Eu era bom em exatas, no vídeo consigo entender melhor, mas só pelo livro não dá para entender. Pelo vídeo o professor vai explicando e dando mais exemplos. Não consegui ver a parte do aplicativo onde dá para tirar dúvidas e não tenho contato com meus professores, prefiro pesquisar do que perguntar porque a resposta não vai vir na hora", analisa.
Apesar das dificuldades com o ensino à distância, Rauny não se sente seguro para voltar às aulas presenciais no dia 8 de setembro.
"Eu acho melhor [presencialmente] para estudar, mas acho complicado na questão de saúde, tem de minimizar os casos para a gente voltar a fazer as coisas porque senão a quantidade de pessoas infectadas só vai aumentar a gente nunca vai sair dessa. Eu gostaria de estar estudando, mas eu não frequentaria lugares fechados com outras pessoas", afirma.
Gincana
Na tentativa de estimular o engajamento dos alunos, os professores e integrantes do grêmio estudantil da Escola Estadual José Geraldo de Lima, localizado no Jardim Ipanema, na Zona Sul de São Paulo, criaram uma gincana on-line.
A estudante do 1º ano do ensino médio, Kamily Vitória, de 16 anos, integra o grêmio da escola e é uma das organizadoras do evento. Segundo ela, das 13 classes da instituição, cerca de 12 estão envolvidas no projeto.
"Eu acho que a gincana ajuda os alunos a participarem das aulas online porque serve de incentivo. Os alunos têm que se sentir acolhidos pela escola e saber que eles não estão sozinhos, então, a gincana, incentiva os alunos a focarem nessas aulas online, tanto pelo Google Classroom, quanto pelo Centro de Mídias", conta Kamily.
O tema da gincana é "pretos e brancos: qual é a diferença?", e todas as oito etapas do projeto têm que ser baseadas nessa temática. As provas que os alunos têm que cumprir são bem diversificadas e vão desde a criação de um grito de guerra, passando por atividades que envolvem música, dança, dublagem e até a elaboração de um jornal. De acordo com Kamily, as discussões para execução das tarefas são feitas nas redes sociais e o planejamento estreita os laços entre os alunos.
"Está todo mundo envolvido nessa gincana e é muito importante continuar com os laços, mesmo que distante, e estimular o protagonismo do aluno, porque nesse período de pandemia nós temos que ser duas vezes mais protagonistas do que a gente é na escola. Então, essa gincana foi para divertir os alunos, tirar esse peso e mostrar para eles que está todo mundo unido, porque a gincana requer uma certa união. Tanto dos alunos quanto da gestão e fazer essa conexão através de um projeto tão legal, inspirador e que outras escolas também podem se inspirar é muito bacana", conta a estudante.
As crianças são divididas em equipes e cada sala possui o seu 'professor padrinho', que auxilia a turma a executar as tarefas necessárias. Além disso, duas coordenadoras e o grêmio estudantil são responsáveis pela organização das atividades, as quais são avaliados por um comitê julgador formado por professores e alunos do grêmio.
Fonte G1