fbpx

Sidebar

18
Qui, Abr

José Pacheco. "Se a escola não mudar os professores vão ser substituídos por robôs" [PT]

Notícias EAD

O professor que pôs a Escola da Ponte no mapa mundo da educação está em Portugal e promete nova revolução. “Pela primeira vez no mundo vai acontecer a escola do século XXI”, diz. Um dos projetos será em Pampilhosa da Serra.

O professor que pôs a Escola da Ponte no mapa mundo da educação está em Portugal e promete nova revolução. “Pela primeira vez no mundo vai acontecer a escola do século XXI”, diz. Um dos projetos será em Pampilhosa da Serra.

Faz 45 anos que chegou à Escola da Ponte, no concelho de Santo Tirso, mas não é isso que desta vez traz José Pacheco a Portugal. Há 20 anos entre esta margem do Atlântico e o Brasil, acredita que é desta que o sonho avança. “Vai acontecer, quer o ministério da Educação queira quer não”, garante, enquanto nos fala dos planos: lançar, com os primeiros polos na Escola Aberta de São Paulo e na comunidade de aprendizagem A Quinta, na Arrentela – comunidades de aprendizagem que ajudou a lançar nos últimos anos – polos de formação de educadores para o século XXI, que ajudem a fazer a transição da escola-prédio para uma “nova construção social de aprendizagem”. O projeto Open Learning arranca em 2022, acreditam que poderão chegar às 10 mil escolas. Até lá, José Pacheco quer fazer um périplo pelo país e revela que vai começar a trabalhar com a Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra, como há 45 anos fez na vila junto ao rio Ave.

Numa conversa entre passado e futuro, ligados, lembra como foi parar em 1976 a Vila das Aves, onde a velha Escola da Ponte, depois de muita resistência, se tornaria a partir dos anos 80 um caso de estudo mundial – exemplo de ensino aberto, sem salas de aula, turmas ou testes, com objetivos de aprendizagem definidos quinzenalmente pelos alunos, associação de pais e professores tutores. Sente que nada acontece por acaso e que o seu caminho, que começou numa escola onde se aprendia a odiar, estava e está de alguma forma traçado. Em 2023, quer sair de cena, dedicar-se à escrita, que o apaixona, ou não se tivesse especializado nas letras e nas palavras, onde hoje tem colado o português do Brasil. Garante que tudo o que tem ajudado a mudar na escola tem fundamentação, ao contrário de aulas de 50 minutos, alunos em salas de aula todo o dia, anos letivos divididos em trimestres ou, como parece mais avançado, semestres. Para o provar, desafia “fraternalmente” o ministro da Educação, e quem queira, para o debate público.

Tem o seu nome associado à Escola da Ponte mas estamos num dos projetos mais recentes que ajudou a formar, uma comunidade de aprendizagem fundada por um pai, também sem divisões por idade e com planos individuais de aprendizagem. Tem quantos filhos destes pelo mundo?

Já não são bem meus filhos, são netos, bisnetos. No mundo, que tenha conhecimento, são uns milhares. Não poderei dizer que todos são comunidades, mas são locais, escolas, que estão tendendo para uma nova construção social de aprendizagem. Às vezes não sei se as pessoas têm noção disso mas esta que temos é originária dos séculos XVIII e XIX, um modelo de escola com mais de 200 anos, que correspondia às necessidades de há dois séculos. Temos alunos do século XXI, com professores do século XX, a trabalhar como no século XIX.

Costuma dizer que muito vem do que eram práticas militares, dos conventos.

É uma escola com origem na Prússia militar, de onde ficaram uniformes que algumas escolas ainda têm, a ideia de disciplina, os pátios. Com a primeira revolução industrial em Inglaterra veio a padronização do tempo, a segmentação. E depois teve influência dos conventos, dos mosteiros, a “cela” de aula. Tudo o que é ciências de educação, psicologia de educação, sociologia de educação, evoluiu, está no 4.0. A escola está no 1.0. Porquê? As escolas não são geridas pela pedagogia, são geridas pela burocracia.

Porque é mais fácil organizar desta forma uma escola pública que garanta acesso a todos?

Acesso há, mas sucesso não. E o acesso tem de ter sucesso, se não não é escola pública. Ou seja a escola dita pública não é pública. Para tal precisa de garantir o direito à educação a todos e não garante. A educação é um direito fundamental de todos. A escola pública é aquela que todos acolhe e a cada qual dá condições de ser sábio, autónomo e feliz, quer seja de iniciativa estatal, quer seja de iniciativa particular. Aqui estamos numa escola particular mas eu sou professor da escola pública e vamos trabalhar com agrupamentos de escolas, com municípios.

O primeiro, já me disse, será a Pampilhosa da Serra.

Vamos começar, irei lá em outubro. Costumo dizer que quando alguém quer mudar alguma coisa enfrenta grandes obstáculos. Não é fácil. O primeiro obstáculo sou eu, a minha cultura profissional. O professor foi formatado para dar aula, para ter turma. Segundo obstáculo: os alunos. Quando dava aulas na universidade, ficava espantado como é que jovens de 20 e tal anos só queriam aula, não queriam aprender, não queriam pesquisar. Não vou dizer onde era assim.

Fez o mestrado em Ciências da Educação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.

Sim, mas passei por várias. A que mais me agrada é a Universidade de Brasília, onde esteve o Agostinho da Silva. Sento-me debaixo da mangueira onde ele escreve os poemas.

Seguiu de certa forma as pisadas dele indo para o Brasil.

O Agostinho da Silva deixou escrito o seguinte: “Portugal desembarcou na África, desembarcou na Ásia, desembarcou na América. Só falta Portugal desembarcar em Portugal.” Nunca se deu muito valor ao que se fazia de inovador cá. Mas fui um privilegiado por conhecer os dois lados e agora quero ajudar a aproximar as margens.

Escreve numa das suas crónicas publicadas no Brasil que o Portugal da educação finalmente despertou. Quando é que sentiu esse despertar?

Senti nos últimos anos, sinto quando o André Rosendo me convida para este projeto d’ A Quinta. Não imaginaria estar aqui hoje. Gastei muito tempo a contestar, a combater, isso desgastou-me. Mas agora sinto-o nos pais e mães que me escrevem, nos professores, que viram o que fizemos na Ponte, no projeto Âncora no Brasil.

Uma oferta educativa direcionada sobretudo a crianças mais desfavorecidas, não foi?

Para todos, mas sobretudo para esses. Trabalhamos com muitas crianças de famílias monoparentais, crianças que o pai foi assassinado ou está preso. Barra pesada, como diz o brasileiro. E são esses os melhores alunos do Brasil. Dá para entender? Sinto-me muito motivado quando me escrevem com preocupações com educação e no fundo é isso que me traz aqui e que fez avançar com este projeto. E há uma coisa: a maior parte dos projetos que ajudo a fazer vêm das famílias, não vêm dos professores. Temos excelentes profissionais nas nossas escolas, mas têm medo de perder o emprego. Não gosto de generalizar, mas é assim. Vou trabalhar agora em vários agrupamentos de escolas com diretores extraordinários mas a maioria são mini-ditadores, autoritários e que impedem qualquer mudança. E continuando nos obstáculos, um terceiro é a força burocrática que tem o ministério. Um dia o Goucha, naquele programa da manhã, perguntou-me o que faria se fosse ministro. Respondi-lhe que faria um decreto: “extinga-se o Ministério da Educação”. Para que serve o Ministério da Educação?

Para promover uma política nacional?

E depois? Há crianças que se adaptam, outras que não e não encontram resposta. Na Escola da Ponte recebíamos tudo o que as outras escolas atiravam fora. Autismo, paralisia cerebral, espinha bífida, surdez. Recordo-me do primeiro surdo que recebemos. Foi nessa altura que compreendi que a escola não estava preparada. Se não está, porque é que se coloca uma criança destas lá? É o faz de conta da inclusão? Tentei explicar-lhe a noção de pretérito, presente e futuro e não consegui. Se houvesse algum deficiente ali era eu, que não sabia linguagem gestual. Não há dificuldades de aprendizagem, há dificuldades de ‘ensinagem’ dos professores e por isso têm de se ser humildes e ir aprender. Ninguém aprende dentro de uma sala de aula repetindo. E ninguém dá de beber a um cavalo quando ele não tem sede.

É isso que falta hoje na escola, sede?

A alunos e professores. Falta que a aprendizagem tenha um significado. Sou da prática, mas não há prática sem teoria. Há três grandes correntes na educação. O paradigma da instrução, que é o que ainda temos maioritariamente hoje; o paradigma da aprendizagem, em que o centro já não é o professor mas o aluno. E este vem do princípio do século XX, com Montessori, Waldorf....

Pedagogias que só nos últimos anos se tornaram mais faladas.

E que ainda não estão em prática em todo o lado. A Escola da Ponte foi a primeira no mundo a concretizar isso, a passar do centro no professor para o centro do aluno. O Estado devia ter-se orgulhado, em vez disso tentou destruir-nos várias vezes até que em 2003, ao fim de 30 anos, quem nos salvou foram as universidades. O meu amigo António Nóvoa, o Rui Trindade, entre outros. Conseguimos o primeiro contrato de autonomia pedagógica no mundo. E por fim o último paradigma, que é o paradigma pedagógico da comunicação, que é o que toda a gente escreve mas não aplica. É um paradigma em que se valoriza a relação entre aluno e professor, há uma gestão do conhecimento, constrói-se um significado na comunidade. Hoje nem o paradigma de aprendizagem se aplica. O que vemos numa escola superior de educação? O professor a dizer aos alunos que o centro deve ser o aluno, mas dando aulas como no século XIX, instruindo. Tem um quadro digital em vez de quadro de plástico. Usa internet para o ensino à distância. O ensino à distância não serve para nada. O que é preciso é aprendizagem presencial e à distância.

Como se aplica isso num dia de aulas?_

Nos projetos que acompanho, as crianças aprendem no prédio da escola, na praça, no centro cultural, na floresta, na igreja, num trabalho sempre acompanhado ou por professores ou por familiares ou por vizinhos. A educação é integral, não é só o cérebro, é afeto, emoção, a ética, a estética, a espiritualidade. O ser humano é multidimensional. A escola que temos hoje, quando trata todos por igual ao mesmo tempo, não conhece ninguém. Existe um vazio entre professor e aluno e esse vazio alimenta solidão, que começa cada vez mais cedo. Hoje quando uma criança chora já não se mete a chupeta, mete-se um computador na mão e a criança vai passar a vida a movimentar os polegares sozinha, sem ver quem está ao lado. E o que transmite a escola? Não é só o que o professor diz. Quando um professor está sozinho a falar e um aluno está a ouvir não aprende autonomia, aprende individualismo. A autonomia é um conceito relacional, saber estar com os outros, construir com os outros. Costumo dizer até que a escola ensina corrupção.

É para provocar?

Quando um professor aplica um teste fica na sala. Para quê?

Para os alunos não copiarem.

Está a transmitir que os alunos são todos potencialmente desonestos. Mais triste ainda quando um teste não ensina nada. A preocupação com o termómetro não faz baixar a temperatura. E quando aparece uma criança com problemas em casa, os pais em separação, uma criança que sofre um trauma, o que é que acontece? Má nota é insucesso, vai para centros de explicações para tentar recuperar. De quê? Essa ideia de que o aluno é um ser não iluminado, que é preciso encher não de conhecimento mas de informação que ele esquece, não faz sentido. Dizem que sou contra as aulas, sou contra a aula em que o professor dá a mesma matéria a todos ao mesmo tempo e depois faz o teste. Experimenta fazer um teste hoje sobre o que foi dado e daqui a um mês. Deve claro haver avaliação, mas avaliação é outra coisa.

Como?

Dou um exemplo a que assisti numa escola no Brasil. A criança diz à tutora que já sabe fazer a raiz quadrada. A tutora liga a câmara do telemóvel e põe a gravar. Primeiro pergunta: “porque é que foste estudar a raiz quadrada?”. É assim que se constrói o currículo. Responde: “O meu pai pediu-me ajuda porque estão a fazer um parque de jogos e não sabem como fazer uma circunferência, calcular a área do círculo. No basquetebol, surgiu uma questão em que era preciso raiz quadrada. Fui aprender”. E continua: “Como aprendeste?”. São eles que fazem a planificação.

Como é que um professor com cinco turmas gere esse processo?

Um professor não tem turmas.

Um professor de Matemática com 100 ou mais alunos.

Um professor tutor tem no máximo 15 alunos. Temos turmas com 30 alunos, é verdade. Mas divide o número de alunos pelo número de professores em Portugal, quanto dá: um para oito. Uma coisa é o professor tutor, outra são os professores de disciplinas. Foi o que fizemos na Escola da Ponte. Eu era professor de português e era tutor de x alunos, sujeitos de aprendizagem. As pessoas perguntam muitas vezes, mas não há turmas, não há ciclos? Não. Há aprendizagens e a criança com o professor constrói a sua planificação em função de objetivos, motivação e do seu ritmo. E a avaliação é contínua. Naquele exemplo, a criança explica que esteve com o professor de matemática, depois o professor aconselhou um site onde podia treinar. A professora tutora por fim pergunta: e agora o que queres? “Que me passe uma raiz quadrada para ver se sei fazer”. A tutora passou uma raiz quadrada de seis dígitos, a criança faz os cálculos, está certo. E agora? “Vou ajudar nas marcações”. Como se avalia, o vídeo vai para o portfólio digital como evidência de aprendizagem verbalizada, construída e aplicada. Os pais podem consultar logo.

Como é que se entra na faculdade com evidências de aprendizagem?

Ainda há provas de acesso, mas hão de acabar. Os alunos hoje fazem exames, têm bons resultados. Em Portugal durante 15 anos, de 75 a 90, não houve provas de acesso. O ensino dito superior é um direito, não é obrigatório, mas é um direito. Haver um processo de acesso é ilegal. O que deve acontecer é com evidência de aprendizagens, não com notas, qualquer pessoa poder aceder ao direito à educação no ensino superior. Durante 15 anos queixavam que as notas no ensino secundário eram más porque não havia exames. Fiz estudos quando estava no Conselho Nacional de Educação dos resultados obtidos com a reintrodução dos exames. As notas eram mais baixas. Se fizer os mesmos exames aos mesmos alunos passado um ano não entrariam na faculdade, já esqueceram tudo. Para que é que andam lá a meter aquilo tudo na cabeça, a perder tempo, a gastar dinheiro? Isto está profundamente errado. E vai mudar, garanto que vai. Um dia houve um professor universitário que me disse: “Eu aprendi tudo na escola da aula”. E então disse-lhe: “Posso fazer perguntas sobre o que aprendeu?”. E ele “faça favor”. Quer que faça perguntas sobre o exame de acesso à universidade? “Já não me lembro”. Quer que lhe faça perguntas do secundário? “Pode”. Pois vou fazer do básico, disse. Fiz-lhe então as perguntas: sabe fazer uma raiz quadrada. Baixinho responde “não”. Passando para Portugal, quem descobriu os Açores? Ninguém sabe. Quantas vezes precisaste de usar raiz quadrada na tua vida? Porque é que a raiz quadrada está no currículo? Mas a questão é: aprenderam? Não aprenderam, tiveram aula sobre raiz quadrada, fizeram teste.

Voltando ao exemplo de um dia de um aluno nesse sistema de escola aberta. Como se organiza?

O dia de um aluno é diferente do dos outros milhões de alunos. Um dia disseram-me: “isto é tudo muito lindo, mas é teoria”. Não é, é o que faço, em escolas de excelência académica. No projeto Âncora, reunia com os meus mocinhos e mocinhas ao final da tarde e fazia a avaliação do dia, com que professores tinham estado. Pergunto a cada criança o que está a aprender. Raiz quadrada, para usar o mesmo exemplo. Muito bem. Amanhã o que vais fazer? “De manhã vou estar com a equipa a fazer marcações”. Digo-lhe para de seguida ir à biblioteca ter com o professor de matemática para ele lhee introduzir objetivos que vai ter de aprender. O professor é que sabe, não estou a dizer que é para as crianças fazerem o que quiserem. Detesto experimentalismo, é pior que o professor que dá aula pensando que está a ensinar. E depois? “Vou à biblioteca pública porque há um livro de história que preciso consultar para um projeto”, diz a criança. Muito bem: faço a agenda no meu telefone. Às 11h da manhã estou a ligar para o professor de matemática a perguntar se esteve com o aluno. Depois ligo para biblioteca. Tenho controlo total sobre o que o aluno está a fazer e ele, ao final do dia, vem prestar contas. A única coisa que o aluno precisa é de um bom telemóvel e de uma pen drive.

Geralmente ouvimos os professores a falar mal dos telemóveis...

Eu sei, o telemóvel tem tudo o que o professor papagueia, é um competidor.

Mas essa é a dinâmica para crianças de que idade?

A menina da raiz quadrada tinha 5 anos. Com 13 anos estudou física nuclear.

E depois?

E depois continua a ter objetivos, há tanto para aprender, porquê ficar limitado a um programa? Se eu quiser saber o que é a raiz quadrada vou à internet e em cinco minutos aprendo. Tenho de aprender a aprender, a pensar. E isto hoje é evidente. A escola está a preparar para empregos que daqui a dez anos não existem. No tempo que temos inteligência artificial estamos a trabalhar como no século XIX. Claro que tem de haver aprendizagens essenciais, mas temos de dar às crianças oportunidade de se manifestarem, expressarem os seus desejos, a sua visão.

Como é que os miúdos circulam fora da escola?

Acompanhados, de preferência, por educadores, por familiares.

Continuarão então a ser precisos auxiliares.

Sim mas os auxiliares são educadores. Nas escolas onde trabalho, a auxiliar que limpa os quartos de banho não limpa, ensina a limpar. Quem limpa são os professores e os alunos. Quem suja, limpa. No Japão é assim.

E os pais aceitam?

Se não aceitarem vão para o raio que os parta.

Pode haver aquela postura, então no ensino privado, de que não pagam para isso.

Estão a pagar ignorância. Estamos a falar de uma construção social nova, que dá significado ao que se aprende. Temos projetos com bancos de hora de voluntariado das famílias. Há avós que ensinam meteorologia popular, croché, não precisam de ir ao prédio da escola, estão em casa e os alunos vão lá. Cá, o que a nossa Lei de Bases do Sistema Educativo diz é que o sistema educativo tem participação dos dos professores, dos alunos, das famílias, das autarquias, de entidades representativas das atividades sociais, económicas e culturais, das universidades. Não diz “ou”, diz “e”. Mas o que é acontece na prática? A família atira para a escola. O ensino dito superior diz que eles vêm mal preparados do secundário; o secundário diz que vêm mal preparados do básico, o básico diz que vêm mal do jardim de infância, o jardim de infância diz que vêm mal preparados de casa e os pais dizem “para que é que tenho filhos...”.

Sentiu que a pandemia, tendo obrigado as escolas a adaptarem-se, foi uma oportunidade perdida para fazer diferente?

Está a ser, infelizmente. E há uma coisa: os projetos que desenvolvemos continuaram, os miúdos continuaram a trabalhar e a reunir-se com tutores, cinco a sete, com máscara, desinfetante, a dois metros de distância. Não perderam um dia. Os outros? Fecharam o prédio. O ministério esteve em situação de crime, de abandono intelectual, porque aula presencial ou remota é igual: não serve para nada. É perder tempo a pensar que se aprende.

Nunca aprendeu nada na escola?

Andei na Gomes Teixeira no Porto e fui para montador eletricista.

Nunca lhe passou pela cabeça que ia ser professor.

Nunca, ia para engenharia. Só pensei nisso quando comecei a ensinar o meu irmão mais novo. Ia levá-lo à escola. Diziam-me que eu tinha jeito para ser professor. Eu dizia: tenham mas é juízo, aturar putos ranhosos... Um dia a professora pediu-me para ir à escola ouvir uma palestra de um professor. Pus-me perto da porta para ir embora, tinha 17 ou 18 anos.

Tinha de ir trabalhar.

Sim, fazia instalações de baixa tensão. Ganhava a vida ou perdia vida. E ele começa assim: “Estou com 50 anos de idade, 30 anos de profissão, sempre dei aula e quando o aluno não sabia, eu pegava na régua batia”. Isto era o que eu tinha aprendido na escola.

Também apanhou.

Quando me perguntam o que aprendi na primária tenho de responder que aprendi a odiar.

Pensa-se que as reguadas eram o “normal” mas muitas pessoas de gerações mais velhas ficaram com um trauma profundo, odiavam a escola.

Não se esquece. Assisti a esta cena na escola industrial: o professor era o engenheiro Celso, um indivíduo inqualificável. Entrava, pegava na caderneta, passava as folhas, parava num e dizia o nome. Já se sabia o que ia acontecer. Dava murro, pontapé, batia com a cabeça do aluno contra o quadro. Há uma frase em francês que é “a letra com sangue entra”. Um dia quando o professor Celso diz “Dimas tal” faz-se silêncio, ninguém se levanta e ouvimos começar gotejando a urina do Dimas. Dá para entender o medo? Isto foi o que aprendi primeiro, depois veio esse dia. Estava à porta a ouvir a palestra. O professor dizia: “Tenho 50 anos de idade, 30 de profissão, durante 20 anos dei a minha aula castigando os alunos. Há uns 10 anos um aluno não me soube responder e castiguei. A criança não chorou, olhou para mim e perguntou: ‘Porque é que nos bates, porque é que não nos ensinas?’”. Contou que naquela noite não dormiu, falou com aquele jovem, com outros, mudou radicalmente. No dia seguinte fui à escola dele ver o que era. Estava muito cético, aquilo parecia teatro. O que vi? Hoje sei o que era: Montessori, Ferrière, Claparède, Decroly, Freinet.

O movimento da escola moderna.

Tudo o que eu viria a fazer. No dia seguinte, fui-me matricular para ser professor, para fazer exame na escola do Magistério do Porto. E repara nisto: estávamos em 1970. Em 80 e tal, estava a fazer uma formação para professores. Um deles pergunta se pode fazer a biografia de um professor para avaliação. “Podes, sim, que professor é?”. Vinte anos depois, era o professor Lobo. Se continuo nesta onda, vamos perceber que nada acontece por acaso, há sincronicidades. Tenho um vídeo do último ano que esse professor trabalhou. Trabalhava em Senhorinha, Sever do Vouga, é de uma qualidade o que ele fazia... Quem é que conhece o professor Lobo? Nem a Irene Lisboa... tudo o que ela escreve na década de 40 sobre educação continua atual. Mas te garanto, desta vez vai acontecer. A educação nunca foi notícia, só é notícia quando o cachorro morde o homem, quando há um professor batido ou assim. Desta vez o homem vai morder o cachorro. Fazendo uma estimativa por baixo, diria que temos 500 pais e 200 professores prontos para fazer diferente e vão fazer. Pela primeira vez no mundo vai acontecer a escola do século XXI, quer o ministério queira quer não. As escolas de hoje estão fora da lei. Diz na lei de bases que a avaliação é formativa, continua e sistemática. Um teste não é formativo, não é continuo, não é sistemático. Isto não é estar fora da lei? O que tem acontecido que tem acontecido é algo que considero hipócrita, que é continuar a escola que sempre tivemos e juntar-lhe ideias de ensino livre, aulas de reforço, reduzir alunos por turma...

Nos últimos anos houve medidas de flexibilização curricular, não pode ser por aí?

São paliativos do modelo obsoleto da aula, está esgotado há mais de 100 anos. Porque é que há disciplinas, porque é que se passa de trimestre para semestre, porque é que há ano letivo, alguém sabe? As pessoas não sabem que cada jovem é único, tem um estilo de inteligência predominante, tem um ritmo próprio que não é o do outro e não é o do professor. Isto sabe-se há mais de 100 anos e a mudança vai acontecer. Como? Criam-se núcleos de projeto, as pessoas encontram-nos valores que partilham e encontram formas de o implementar nas escolas, na comunidade. E isto tem fundamento teórico, um ano por semestres não tem, uma aula de 50 minutos não tem. A partir daí os pais vão procurar escolas onde haja professores que não tenham morrido, como costumo brincar. Hoje os projetos educativos das escolas são extraordinários mas os professores não os conhecem. Já li milhares e todos escrevem: vamos fazer alunos cidadãos, autónomos. Pergunto: Como é que nas aulas se desenvolve autonomia? Desenvolve-se o contrário, dependência, egoísmo, corrupção. É uma falsidade ideológica dizer isso, é crime.

Se a escola não mudar, o que imagina que acontecerá?

Os professores vão acabar por desaparecer. Se é para debitar matéria, empresas, universidades, despedem professores e contratam robôs. Qualquer pessoa substitui o professor ‘auleiro’.

Com menos alunos, as escolas no interior foram fechando. Será essa a tendência, concentrar?

Declaração Mundial sobre Educação para Todos, 1990, o princípio de educação ao longo da vida. Portugal subscreveu mas parece que não se lembra. Há 40 anos acompanhei um homem chamado Rui D’Espiney, que criou o projeto Escolas Isoladas, com uma dimensão comunitária. O que aconteceu depois? Fecharam-se as escolas, fez-se desaparecer comunidades. Se tivermos 10/15 anos em comunidade escolar, não são só elas a aprender, é toda a aldeia. É isso que queremos também desenvolver. Uma comunidade de aprendizagem é isso mesmo, uma partilha de valores, de necessidades, de desejos, no território. E envolver as famílias. Nos primeiros dez anos da Ponte fizemos reuniões de pais de 15 em 15 dias. Eram 40 por ano.

E os pais iam?

Todos. Se algum tivesse de faltar tinha de avisar, por telefone fixo. Falávamos de aprendizagem. Um dia um pai diz: “Não concordo nada com a maneira como ensina a ler”.

Foi a sua área de especialização, ensinava com frases não era?

Sei ensinar de 25 maneiras. O pai diz-me aquilo à frente de toda a gente. Respiro fundo: “Senhor, qual é o seu emprego?”. “Tenho um gabinete de contabilidade”. Pergunto: “Eu na segunda-feira posso ir ao gabinete?”. Disse que sim. “Quando lá chegar posso dizer que não concordo com a maneira como trabalha?”. “Não”. “Então cale-se”. Ouvimos os pais mas também explicamos o que fazemos.

O que o levou para especializar-se em leitura e escrita?


Quando comecei ensinava pelas letras, o método sintético, muita gente não aprendia. Não sabia ensinar de outra forma. É o pa-pe-pi-po-pu, o popó faz pipi. Frases de alto gabarito intelectual. Alguém com seis anos fala assim? Uma vez perguntei a uma colega: sabes o que é uma pua? Aparecia numa das frases na primeira página do livro. Ninguém sabia, e uma criança vai saber? Poderia continuar a ensiná-los dessa maneira? Combinei com as minhas colegas: uma ficou com a matemática, outra com meio físico, eu fui para língua portuguesa e fui aprender a alfabetizar. Fiz 12 cadeiras de psicologia, epistemologia, métodos, recolhi repertórios linguísticos. Ao fim de um ano já sabia 25 formas de ensinar. Qualquer criança que entre na escola já sabe ler. Sabe ler McDonald’s, Coca Cola, para que é que vou dizer pa-pe-pi-po-pu...

Sabem ler ou decoram?

É ler. Vou dar um exemplo mais radical. Quando conto estas coisas os meus amigos da Waldorf matam-me: “Não pode, só depois da segunda dentição”. É o que se chama fundamentalismo, isto são autenticas religiões. Uma amiga quando o filho nasceu perguntou-me se queria ensiná-lo a ler. E eu “calma”.

Quando nasceu?

A gente começa a ensinar a ler antes de nascer. O ritmo da fala é adquirido intra-uterinamente, por volta dos sete meses de gravidez. Os primeiros neurónios de espelho aparecem por volta dos cinco meses de gravidez, ou seja, já existe aprendizagem, só que é mais emocional do que cognitiva. Quando fez dois anos, ela perguntou-me e “eu ok, agora vai”. Tive 15 encontros a brincar com a criança. Fiz dominó com palavras e símbolos, para tudo o que era significativo para ela fiz etiquetas com velcro com o nome. No último dia, da avaliação, disse para a mãe preparar o banho e trocar as etiquetas todas do banheiro, umas 40 palavras. A criança senta-se na banheira a chapinhar e de repente pára: “está mal, está mal, está mal”. Recolocou as 40 palavras no sítio certo. Mas atenção, uma coisa é conseguir, outra é o desenvolvimento emocional, cognitivo, motor. E foi o que disse àquela mãe: “Não quero monstrinhos, recolhe tudo e põe-no a brincar”. Posso dar outros exemplos de como se aprende e como se ensina. Uma vez um velhinho de 92 anos pediu-me para o ensinar. Queria aprender porque era testemunha de Jeová e achava que o pastor dizia que lia os textos mas inventava. Gravei numa cassete o primeiro capítulo do Génesis e dei-lhe o texto escrito. Disse vai escutando e tentando adivinhar onde está escrito. Por analogias fonéticas, aprendeu a ler em dois meses, pelo método global de contos. Nunca tinha aprendido. Uma terceira história: uma mãe de uma aluna, que tinha andado em duas escolas sem aprender a ler, até no particular, e na Ponte em meio ano lia tudo. Um dia a senhora diz-me: “também quero aprender a ler”. Pergunto-lhe porquê e diz-me que o marido chega tarde a casa, anda desconfiada. Queria ler os bilhetes no casaco dele. Aprendeu a ler em dois meses e separou-se. A leitura é emancipatória, foi o que me seduziu. Cada um tem o seu ritmo, o que funciona com um pode não funcionar com outro. Quando um professor entra numa sala, começa a ensinar todos ao mesmo tempo, “hoje é o pa-pe-pi-po-pu, depois ta-te-ti-to-tu”... Ao fim de um mês a maior parte da turma já não consegue acompanhar, os pais ficam preocupados, alguns vão para explicadores.

Como se ultrapassa?

Tem de haver formação de professores, especialização. Em vez disso o que a escola faz é homogeneizar. E depois acusa a família, que não há livros em casa, ou que o pai é analfabeto, que são pobres.

Famílias mais instruídas não têm filhos com maior sucesso académico?

Isso não está provado, isso é eugenia. A principal causa de insucesso é sócio-institucional. É o modo como as escolas funcionam. Não é por razões socio-económicas, que também existem. Conto a história do André. É um jovem que chega à Ponte e com nove anos, não sabe ler nem o nome dele. Síndrome de Down. O relatório de psicologia dizia que nunca iria aprender a ele. Chega com fama de desordeiro, tinha rebentado com o carro de uma professora. Perguntei-lhe o que queria ser. Tinha um palato muito baixo mas entendíamo-nos. Ele perguntou-me “eu posso dizer o que quero ser?”. Quando uma criança responde isto, já lhe destruíram a curiosidade, proibiram-no de perguntar. É um assassinato. Ele diz-me: “Quero ser guarda-redes”. O André que aos nove anos não sabia ler nem escrever fez o ensino básico dentro da idade, fez um técnico-profissional e quando Portugal ganhou o campeonato da Europa de futsal de Síndrome de Down, o guarda-redes era o André Mesquita. Vai para a Assembleia de Freguesia e fala muito melhor do que qualquer outro, explicita, argumenta. Com trissomia 21, condenado a não aprender a ler. Se fosse noutra escola, hoje estaria aí, analfabeto. Só na Ponte tenho centenas de casos destes.

Indo ao início, faz agora 45 anos que chegou à Ponte. Como foi parar a Vila das Aves?

Tudo começa em 1970, sem que eu soubesse que existia a Escola da Ponte. “Amei-te muito antes de te conhecer”, como diz o Pessoa. Em 1970 comecei numa escola particular no Porto. Em ‘72 vou para a Escola da Torrinha no Porto, havia preferência de homens para as escolas masculinas. Mais uma história. Tenho irmãos mais novos 20 anos. Um dia estávamos na varanda da casa da minha irmã Paula e o marido dela, que infelizmente já faleceu, pergunta-me qual é a melhor escola do bairro. Respondo-lhe: “em todas as escolas há bons professores”. E ele diz não é bem assim, tive um professor que fez de mim tudo o que sou hoje e outra que era uma cabra e me tirou da escola. Dizia “tens piolho, andas descalço, vai embora”. “Não quero saber da cabra, como era o outro?”, perguntei-lhe. “Era diferente, ia connosco jogar à bola, tirava-nos os piolhos, ensinava-nos a ler de maneira diferente.” Gosto muito de escrever crónicas e já ia escrever sobre aquele professor. Pergunto-lhe como ele era: “Era mais ou menos da sua altura, tinha o cabelo pelo fundo das costas, barba enorme, andava sempre de negro e tinha sandálias”. A certa altura pergunto-lhe: em que ano foste para a escola? Em 1972. Em que escola andaste? “Na Torrinha”. Era eu o professor.

Andar de cabelo comprido devia ser logo motivo para comentários.

Fui dos primeiros a usar cabelo comprido. Não acabei o ano letivo, fui preso pela polícia política, metido à força no exército para morrer.

Era do PCP?

Nunca fui de nenhum partido, mas estava na luta contra o fascismo. Conheci pessoas como o Zé Saramago, aprendi muito com eles, era um moço de recados. Perdi muitos companheiros na tortura. Fui metido na tropa à força e todos os colegas professores foram para a amanuense, a tropa de escrever, não iam para o mato. Eu que sou o único estrábico puseram-me em atirador de infantaria, para me eliminarem. Tinha estado na Guiné como infiltrado, no meio da guerra, sabia como era. Percebi que tinha de ficar para não morrer, porque se fosse morria – mesmo que conseguisse matar alguém não o faria porque era pacifista. Abre um concurso em que oito poderiam ficar cá a dar instrução. Éramos 3200, decorei tudo, fiquei em oitavo. Entrei nas Caldas da Rainha, entrei em Tavira. Liguei-me aos movimentos contra o fascismo, fui operacional no 25 de Abril com as operações especiais de Lamego. Um dia conto essa história. No dia 18 de abril de 1975 fui trabalhar para Macieira da Lixa, levei para lá o padre Mário, fizemos um projeto extraordinário comunitário. Depois concorri de novo e fui para Ferreira, em Paços de Ferreira, em setembro de 1975.

Já ia em três escolas.

Já naquela altura, ainda sozinho, trabalhava diferente. Aí quase fui assassinado. Uma história longa que vou resumir porque podia ter mudado tudo. Comecei a ter fama de bom professor, levava as crianças para conhecer o meio, fazer observações. Era um meio muito conservador. Todos os dias viajava do Porto para Ferreira de camioneta. Levava quase quatro horas. Passava a pé pelo meio do mato para chegar à escola, parava a comer o almocinho no meio da natureza, dava as aulas e no fim da tarde voltava para casa. Ferreira não tinha energia elétrica. De noite no inverno era a ver quando batia com a cabeça em algum lugar. Um dia perdi o autocarro, não acordei. Fui para a estrada pedir boleia e arranjei boleia direta para a escola. Cheguei mais cedo a meio da manhã, não passei pelo meio do mato. Chegou a hora e os alunos não chegavam. Um carro pára, sai um homem de dentro. “É o professor José Pacheco? Venha comigo”. Entramos numa quinta, fechou portas, janelas. Disse-me que era o padre. “Veio pelo meio do mato?”, disse-lhe que não. Ajoelhou-se: “Obrigado meu Deus”. Diz-me que há um boato de que tinha posto duas crianças nuas a simular sexo. Houve pais que acreditaram e foram para o mato para me matar. Estou a resumir, mas dava um filme. Sem luz, fizemos uma reunião à noite na escola, com o padre na frente, com o PC de Freamunde com espingardas e os pais com archotes. Vinham para me matar. Até que vi lá no meio uma aluna, só uma. Pedi-lhe “Margarida, vem aqui. Estes senhores estão a dizer que pus alunos nus”. Ela começou-se a rir. “Nunca pôs ninguém nu”. Lá disseram que foi a professora tal que disse, iam para casa dela bater-lhe, parámos tudo. A Margarida salvou-me. Isto foi em 1975. Em 2005 estava a lançar um livro na Escola na Ponte. Na fila dos autógrafos, vem uma senhora. Pergunto o nome: “Margarida”. Começo a escrever e digo foi uma Margarida que me salvou. E ela: “olhe para mim, sou a Margarida, venho trazer o meu primeiro filho para a Escola da Ponte. Conto essa história, mesmo saltando muito, porque esse encontro com a Margarida foi tudo.

Mesmo assim não quis ficar em Ferreira.

No resto do ano, com a má consciência de me poderem ter matado, davam-me tudo. As melhores febras quando matavam o porquinho, ovos, arranjavam-me uma casa para eu ficar mas havia aquela resistência a fazer diferente e eu disse aqui não fico. Cheguei a pensar deixar a profissão, não estou para isto. Ainda disse à minha companheira vou voltar para eletrotecnia. Na altura ganhava 20 mil escudos e fui ganhar 1100 como professor, nove vezes menos. Foi a melhor coisa que fiz e voltava a fazer. Ela diz: “Tenta uma vez, só mais uma vez”. Havia concurso, peguei na lista e a primeira freguesia era Aves. Havia duas vagas, Ponte e Quintal. “Ponte”, pensei, que metáfora para aquilo que eu quero fazer. E ela muito bem, mete a cruzinha. Nem sabia que havia uma Escola da Ponte, nem uma Vila das Aves. O resto é conversa para uma semana. A primeira associação de pais em Portugal foi na Escola da Ponte. O jornal escolar mais antigo do mundo é o da Ponte. As crianças descobriram que era vila dos aves mas não dos pássaros, dos rios Ave. Fizeram pesquisa. Levaram a comissão nacional do ambiente a criar o processo de despoluição do Rio Ave. É uma das melhores escolas do mundo.

Como foram os primeiros tempos?

Fui para professor primário. Quando quero fazer diferente, a diretora proíbe. A escola tinha quatro edifícios, puseram-me num edifício com a “turma do lixo”.

Quem eram?

Os alunos que não aprendiam. A diretora disse: “Você que é homem vá, porque a professora do ano passado foi para o hospital, partiram-lhe um braço e a cabeça”. Eram miúdos de bairro operário, com família na França, Austrália, Alemanha, muitos sozinhos com os avós. Não havia quarto de banho, iam urinar e defecar no meio do mato. Um dia pergunto à diretora: “Onde estão os pais? Se vão à missa, ao futebol, porque é que não vêm à escola?” Ela diz-me “vá à tasca”. Chego à tasca, sento-me. Entrou um homem, sou estrábico mas lá vi agarrado à perna dos homens um aluno meu, o Sérgio. Pergunto se quer conversar comigo. “Sim, claro, nunca tinha falado com um professor”, diz. Fomos para casa dele, traz dois banquinhos, uma garrafa de vinho tinto e dois copos. Entrei em pânico, não bebia vinho. Ele enche, eu começo a falar e ele não abre a boca. Eu falava e não bebia, ele não falava. Bom, comecei a beber, ao fim de quatro ou cinco copos já ouvia tudo torto mas ele também falava. Vi depois numa tasca: “quem não bebe não é de confiança”. No dia seguinte estava ele na escola e mais três pais, que foram os primeiros a ir à escola. Foi com esses pais que comecei a trabalhar. Em 1982 vieram a Maria José e a Maria Luísa e aí constituímos uma equipa de três professores. Em 1986, o ano da lei de bases, conseguimos tacitamente o reconhecimento de autonomia, estava toda a escola no modelo de escola aberta e eu era diretor. Comecei a ir para a Europa, sempre que o ministério queria apresentar uma escola eu ia. Corri a Europa toda, estou muito grato à Ponte.

Mas sentiu que foi aquele lugar, aqueles alunos ou que era algo que iria acontecer?

Aí teríamos de recomeçar, há um lado que não é racional nisto. Só sei que aos 70 anos tudo faz sentido, está tudo ligado e por isso quero agora que o homem morda o cão e que outros continuem, porque acho que o meu tempo já passou. Costumo dizer que há sete pilares da profissão de professor. Para as crianças são quatro: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender conviver e aprender a ser. Para o professor há esses quatro mais três: o aprender a desobedecer, o aprender a reaprender e o aprender a desaparecer. O dom do desapego. Não posso criar dependência a ninguém, não posso transformar-me num mito.

Foi o que o levou para o Brasil ou foi o cansaço com Portugal?

Nunca estarei chateado com Portugal, tenho consciência de que nasci num tempo de transição e que ninguém faz nada sozinho. A maior parte das pessoas com quem trabalhei já morreram. Quando vejo escolas com o meu nome, salas com o meu nome, detesto. Vou para o Brasil porque lá eu aprendo e emociono-me.

Costuma dizer que é no Sul que está o futuro. Mesmo nestes anos com Bolsonaro, continua a acreditar?

Bolsonaro teria de acontecer. Uma pessoa aqui não imagina o Brasil. Por dia são assassinadas 170 pessoas no Brasil. De seis em seis horas uma mulher é assinada pelo marido, de quatro em quatro uma mulher é estuprada. O Brasil apaixona-me pelos extremos: tem gente extraordinária e gente que nem vou qualificar. O meu sentimento em relação a Bolsonaro é de pena e compaixão. Isto teria de acontecer porque já existia na sociedade brasileira, estava latente, a tendência para ridículo tiranos, o populismo, a exploração do que de pior tem o fundamentalismo religioso, os grandes interesses económicos.

Porque é que acha, ainda assim, que o futuro vai ser construído no Sul?

Um dia estava aqui na Europa e alguém dizia: a inovação está aqui no Norte. Respondi: “está enganado, um dia vai ver. Vai vir um tsunami educacional de sul para norte que vai varrer tudo”. É o que testemunho todos os dias. Há quatro coisas que aqui no Norte não existem. 75% das crianças brasileiras moram em favela. A favela, tirando as milícias, o tráfico e a prostituição, são comunidades de pessoas extraordinárias. Aprendem a resiliência. Lá dentro há violência extrema, mas as pessoas são maravilhosas. Autónomas, cooperantes, solidárias e éticas. Depois temos as comunidades indígenas, pré-colombianas. Um índio a ensinar os seus filhos é uma autêntica lição de pedagogia, as crianças têm autonomia. Depois a influência de tantas nacionalidades, portugueses, italianos, japoneses, por aí fora, que levam criatividade, tecnologia social, tudo isso. E finalmente tem negro, afro-descendente, que diz que é preciso uma tribo inteiro para educar para uma criança. Juntando isto tudo, é uma sociedade com mais sustentabilidade, mas não é essa sustentabilidade que falam para aí. Sustentabilidade é educação, aprendizagem, solidariedade.

O que o incomoda mais hoje quando entra numa escola?

A indiferença. E essa solidão dos professores que é da mesma natureza da solidão dos alunos e da solidão social. Nunca tivemos tantos instrumentos de comunicação e nunca tão solitário o ser humano esteve. E vai estar cada vez mais. Com as redes sociais, com tantas ilusões que temos fabricado. E sozinhos ficamos mais dependentes.

Escreve aos seus netos do futuro, a falar do tempo da velha escola, que os deuses se zangaram com o ser humano e proibiram o homem de ensinar.

Começou hoje a carta 575. Devo ir até 800ª, até voltar ao Brasil. Nessa altura o homem já mordeu o cachorro (risos).

Com todos os altos e baixos, o último século foi contudo o da democratização da escola. Teria sido possível de forma diferente?

Foi democratização do acesso. Teria sido se os portugueses lessem António Sérgio, Bento Jesus Caraça, Irene Lisboa. Se percebessem que para além dos Piagets, etc., tinham tudo o que precisavam. Se fossem ler Adolfo Lima, Faria de Vasconcelos, perceberiam que Portugal foi um dos focos da escola nova. Porque é que se perdeu, é perguntar às universidades.

Psicologizou-se o desenvolvimento?

Como se a pessoa só tivesse cognição, não tivesse mais nada. Sentimento não há. Piaget era zoólogo, Vygotsky era psicólogo e Wallom era político. Montessori era médica. E se isto continua é mais medicação.

Mais ritalina?

Sim, não se faz lobotomia, mas pouco falta, tira-se toda a razão de existência. O suicídio juvenil está a aumentar. A doença profissional nos professores está aí, na lista de espera dos psiquiatras a maioria parte são professores. Eu não conseguiria ser professor de sala de aula, quer pelas condições, quer porque não seria ético. Tomei essa decisão, não forço ninguém a tomar.

Só um 1% dos professores têm menos de 30 anos. Como se ultrapassa?

Não é pagando mais, também, mas dando oportunidade aos professores de melhorar a cultura pessoal e profissional. Onde não há uma pessoa não se pode colocar um professor. A maior parte dos professores morre aos 20 anos e aos 60 anos – passam a vidinha à espera da reforma e depois da aposentaria nunca mais ligam à escola.

Nunca perdeu a chama?

Eu vou morrer no chão de escola, discretamente. O último capítulo desta história toda é este, que me vai levar até 2023. Aí estarei lá a observar e a escrever no máximo.

E se fosse ministro este ano letivo, o que decretava?

Se fosse ministro escutaria a pessoa que está a seguir a ele, João Costa, que é das ciências de educação e é a primeira pessoa que sabe o que faz. O ministro é político, não sabe nada de educação. Aliás os ministros não sabem nada de educação, sabem a escola que tiveram. E insisto. Fraternalmente convido quem quer que seja, mas de preferência o ministro da Educação, para debater publicamente o que é uma escola e porque é que esta escola condena à ignorância a maioria.

Fonte: SAPO